sexta-feira, julho 08, 2005

(a carta da paixão)

Esta mão que escreve a ardente melancolia da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco. Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia dentro da tua árvore.
Ou um filão ardido de ponto a ponta da figura cavada no espelho.
Ou ainda a fenda na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa desarrumação das imagens.
E trabalha em ti o suspiro do sangue curvo,
um alimento violento cheio da luz entrançada na terra.
As mãos carregam a força desde a raiz dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade,
uma labareda fechada, a límpida ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até ao poder com que te toco.
A mudança. Nenhuma estação é lenta quando te acrescentas na desordem,
nenhum astro é tão feroz agarrando toda a cama.
Os poros do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo entre a limalha.
A tua boca como um buraco luminoso, arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio alimenta-se fixamente de mel envenenado.
E eu escrevo-te toda no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados,
as noites que crescem nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio o abraço da nossa morte.
Os fulcros das caras um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

Herberto Helder

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