segunda-feira, setembro 27, 2004

Viagem

Vamos levantar voo juntos
e o que virá seremos nós.

Hoje sinto asas dentro de mim...

Apresso-me,
como se quisesse voar...
elevar-me ao céu azul e procurar cá em baixo
um melhor caminho para virar.
Hoje sinto asas dentro de mim...
Apresso-me,
e sinto-as abrir caminho para fora do meu corpo,
perfuram-me a carne,
afastam-me as vértebras,
rasgam-me a pele e num passo mais rápido,
levantam-me do chão,
ganho altitude...
só eu e o vento que me leva pela mão;
Ele sabe para onde quero ir,
sabe onde sou esperada;
Eu é que não.

sexta-feira, setembro 24, 2004

Sobre um Poema

"Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne."

Herberto Helder

O meu olhar

"O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar..."

Alberto Caeiro

quinta-feira, setembro 23, 2004

O manto da minha morte

Tenho medo desta forma de viver...
Já não me revejo em mim;
Triste, errante, despreocupada caminhante dos dias que se sucediam...
e a imensidão do tempo que urgia na ânsia de me levar a um destino desconhecido, porém, sabido por mim, naquele tempo, antes de ti, vazio;
Só eu e a minha existência forçada, mais forte que a minha vontade de simplesmente apressar o processo e arder, arder em chamas altas e ver-me cair em cinza, esquecida...
Naquele tempo esperava a minha morte, agora espero-te a ti, espada que atravessou o meu descanso;
Que me arrancou da noite escura, tranquila, escassa de vida, onde eu era uma privilegiada espectadora do adormecimento dos que viviam enquanto eu sofria...
Contigo, também eu amanheci junto dos outros e nunca poderei voltar atrás...
Depois de ti não haverá nada;
Desaparecerei algures entre o dia e a noite e sem descanso errarei carregando um manto negro...
O manto da minha morte.

sábado, setembro 18, 2004

Tenho medo

Tenho medo de tudo que não é habitual em nós...
Medo que me surpreendas no mundo paralelo onde vivo quando não estou contigo;
Medo que descubras que vivo para além daquilo que vivemos;
Que não brilho e me extingo em ti,
que vagueio a meia-luz por aí;
Na multidão, no anonimato,
camuflada de um sorriso humano que surge e depois se esconde
e que não quer dizer nada mas,
que a todos chama;
Como se de um espectro do meu mundo contigo, do teu,
escapasse uma luz, o brilho, e nos chamasse, para nos encontrarmos aqui onde nos estranhamos
e nos perdermos lá onde nos amamos.

Para ti

Saída do vazio, eis-me cheia de tudo;
Tenho-te a ti ...
e o mundo que me gritava
agora está mudo.

O escritor - segundo Sartre

"...o prosador é um homem que escolheu um certo modo de acção secundária a que se poderia chamar "acção por revelação". É portanto legítimo fazer-lhe esta pergunta: Que aspecto do mundo queres revelar? Com essa revelação, que modificação queres trazer ao mundo? O escritor comprometido sabe que a palavra é acção: sabe que revelar é modificar e que só se pode revelar quando se pretende modificar. Abandonou o sonho impossível de representar imparcialmente a sociedade e a condição humana."

"Mas podemos concluir desde já que o escritor escolheu a revelação do mundo e especialmente a revelação do homem aos outros homens para que estes adquiram, em face do objecto assim desnudado, toda a sua responsabilidade."

"Do mesmo modo, a função do escritor é fazer com que ninguém se possa dizer inocente."

Excertos de textos de Jean-Paul Sartre citados por Walter Biemel

O Niilismo - segundo o meu pensador, Nietzsche

O Niilismo percorre a maior parte da obra de Nietzsche como uma crítica ao cristianismo (Abaixo a religião!!! Digo eu) e ao socratismo. Neste caso, a vida é regida por valores superiores, metafísicos, por um ideal ascético. O homem delineia a sua existência numa ficção, um além-mundo onde inexiste o tempo. Pela fé neste mundo, a vida é negada, suprimida e acorrentada. O homem falsifica-se a si mesmo, tornando-se um ser regido por valores superiores. Certo é que existe um sentido e uma verdade. Contudo, é direccionando a sua força a esta verdade que o homem deprecia a vida, afinal, viver para a verdade é viver para o nada. A vida assume-se, portanto, como negadora de si própria. Preserva-se por afastar do homem o mal-estar de viver no vazio, mas nega-se por direccionar-se ao nada.
Nesta primeira forma de niilismo, o homem vislumbra livrar-se do tempo, tornar-se infinito. É por medo da morte e do tempo que o ser humano se falsifica. Mergulha numa ilusão no afã de alcançar o eterno. Segue-se que o homem nega o real e entende-o como vão.
O segundo sentido que Nietzsche dá ao niilismo é menos claro. O ideal ascético esgota-se e o niilismo transmuta-se. Aqui, a vontade de poder assume o seu poder de acção e destruição. Renega-se os valores superiores e com eles a ilusão da eternidade. Aqui, o homem mata o seu Deus. Porém como afirma Heidegger, o trono está vago e o homem buscará ocupá-lo.
Este niilismo como destruição, é, para Nietzsche, um novo disfarce das forças reactivas, destruindo, desta vez, a sua antiga forma de dominação e forjando uma nova. É o niilismo activo, que, não obstante a sua força de acção, termina por desembocar no nada, na negação total de valores e da vida. Ainda assim, Nietzsche privilegia esta forma de niilismo, já que nele a vontade de poder assume-se enquanto força destrutiva da moral. Com efeito, a negação da moral indica uma elevação do homem, como afirma Nietzsche em A Vontade de Poder: “A indigência não se tornou eventualmente maior: ao contrário! “Deus, moral, resignação”, eram meios de cura em graus terrivelmente profundos da miséria: o niilismo activo aparece em condições que se configuram relativamente muito mais favoráveis. Já a moral ser sentida como superada pressupõe um razoável grau de civilização espiritual; esta, por sua vez, um relativo bem-viver”

Excertos do texto "O Niilismo" por André Joffily Abath

Tenho-te ainda comigo

Tenho-te ainda comigo,
mas já não flutuas no meu sangue,
num passeio constante a todas as partes do meu corpo como antes, quando provocavas em mim sintomas físicos da tua ausência;
Os pulmões que pareciam devorar o ar...
cada vez que tu por eles passavas;
A noite que caía sobre a minha cabeça...
cada vez que tu por ela passavas;
No meu coração abria-se fundo uma ferida,
e nos meus olhos um rio vermelho...
cada vez que tu passavas...
Tenho-te ainda comigo...
nas águas calmas da minha memória,
onde às vezes mergulho para ficar junto a ti.

sexta-feira, setembro 17, 2004

Amar...

Sofremos por não termos conseguido ficar sós,
por não nos bastarmos
e partirmos na cruel aventura de um amor;
Elevámo-nos às nuvens
para depois cairmos abaixo de nós.

quinta-feira, setembro 16, 2004

Momento

Olhas-me em silêncio
e dos teus olhos imóveis
brotam, a meus olhos,
palavras que devoro a medo...
Prometes-me os astros;
sóis, luas, estrelas...
E eu só te quero a ti...
só a ti!
Desvio o olhar
e fixo o que me ofereces...
Os astros;
sóis, luas, estrelas...

Já não caminho só

Já não caminho só...
a meu lado ouço passos
que me acompanham e que não são os meus...
Partilho ruas através da multidão;
Partilho caminhos rasgando a escuridão;
Partilho até a minha solidão...
Em silêncio,
caminhas a meu lado...
não perguntas,
não duvidas,
não exiges nada para além da minha presença.
Deixas-te estar,
deixámo-nos ser...
como se, apreciássemos, fora de nós,
o deslumbramento que é ver-nos viver.

E nunca mais choveu...

Inesperadamente,
como um dia de sol que surge no inverno,
amanheceste em mim
e nunca mais choveu...
os dias prolongam-se noites dentro,
as noites iluminadas confundem-se com os dias...
o tempo já não me ameaça;
Aparece-me leve,
insignificante...
Tenho todo o tempo do mundo...
não espero que passe,
acompanho-o, vivo!
Contigo, tomei este antigo inimigo como aliado
e o peso que exercia sobre mim dissipou-se.
Apercebo-me do presente sem olhar o passado
e imaginando o futuro silvo para além...
Amanheceste em mim
e nunca mais choveu...

Para V.

Finalmente sinto que me encontrei,
que existo...
vi o meu reflexo em ti
e agora sei...
eu sou!!
Revelo-me a mim em ti,
através dos teus pensamentos
que surgem em palavras tão minhas quanto tuas;
Arrancaste-as de mim,do fundo de ti,
para mas dizeres
e me veres levantar do chão feita eu.
Eis-me finalmente!!
Calor de sol,
azul do céu;
Corpos coloridos que se cruzam
e se atravessam em mim;
e eu, eu visto negro...
negro que me cobre o corpo de alma escurecida.
Saem-me do peito pássaros de asas negras
soltando gritos de cansaço...
de tanto esperar o que tarda chegar,
a minha vida.
A noite surge
e com ela um vazio que te traz nas mãos;
Engano da solidão;
Rasgo de tempo
devorado como um grito ao contrário.
A noite não dura,
a solidão perdura
e o tempo é imenso...
"Solidão...
Não creio como eles crêem,
não vivo como eles vivem,
não amo como eles amam...
morrerei como eles morrem."


Marguerite Yourcenar "Fogos"

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